terça-feira, 31 de agosto de 2010

Anacrônicas - Ana Cristina Rodrigues

Ir ao Fantasticon 2010 foi uma das melhores coisas que pude fazer esse ano. Esse pequeno fim de semana na seca e poluída cidade de São Paulo me fez conhecer muita gente que antes era apenas uma janelinha de MSN ou uma carapaça de aparente mau humor e ironia. Saímos, conversamos, nos conhecemos melhor e eu me diverti como não fazia há MUITO tempo. E, nesse meio tempo, comprei muitos livros – mais do que o meu cartão de crédito podia aguentar.

No entanto, o livro Anacrônicas (Editora A1, 90p.) não foi comprado junto com o montante da Fantasticon. Ele foi comprado há muito tempo atrás, mas, por incompetência dos nossos honoráveis correios, nunca chegou em minha residência pelas mãos de um carteiro. Tive que esperar um tempo considerável para tê-lo em mãos e, só depois de conhecer a Ana Cristina Rodrigues pessoalmente, é que o tenho dedicado e autografado, e posso finalmente emitir a minha opinião sobre os pequenos escritos – mesmo que muitos já o tenham feito antes de mim (e provavelmente melhor).

Antes de tudo, um parêntese sobre o trabalho editorial do livro: ele é lindo. A capa e as ilustrações internas, desenhadas pelo quadrinista e marido Estevão Ribeiro, são um deleite aos olhos. Como não se apaixonar pelo coelho indo lentamente embora e imprimindo suas pegadas no chão no conto “O mapa para a Terra das Fadas”? Ou com a pose mista de força e ternura de Liliane no conto “A Dama de Shalott”? Sem contar com as outras figuras, entre dados, coelhos, relógios e repórteres de jornal.

Outro parêntese: talvez por ter sido um livro feito longe de uma editora grande e de um editor responsável por não ter outra preocupação a não ser vendê-lo, Anacrônicas se torna um relato bastante particular. Seja nos contos pessimistas ou nos alegres, a personalidade da autora consegue se imprimir em cada um deles. Historiadora, mãe, irônica, feliz, triste, mulher. Tudo se junta numa pequena mas significativa quantidade de páginas.

Parênteses feitos, vamos aos contos.

***

É Tarde!

Abrindo a antologia de pequenos contos mágicos, uma história singela e simples, com um ritmo assustadoramente rápido e nostalgicamente delicioso. Em menos de uma página, somos apresentados aos personagens mais significativos do País das Maravilhas e nos enveredamos pela corrida do coelho branco. Com um final um tanto quanto... bem, leiam!

Chiaroscuro

Um conto fluido, com um título interessantíssimo e uma história ainda mais interessante. O jogo de cores e contrastes se mostra bastante presente aqui. O conto mais parece uma obra de arte que ora tende ao chiaro e ora tende ao ‘scuro. Ideia sensacional!

A Princesa de Toda a Dor

Triste e lírico. Daqueles contos que te deixam com um gostinho de fel na boca, com uma vontade de interferir na vida das personagens e de mudar o destino que a autora deu a eles.

O Último Soneto

Igualmente triste, fala sobre a obsessão por um ideal. Me identifiquei absurdamente com esse conto: a agonia, o tédio, o raciocínio, a apreensão, tudo em prol de uma única obra – no caso, o soneto.

A Casa do Escuro Azul

Um conto que facilmente poderia se tornar uma coisa maior. Um romance, uma trilogia, uma saga. A ideia é ótima: após a Guerra Final, um grupo denominado Escudo Azul fica responsável por buscar no planeta grandes obras de arte da humanidade. Algumas coisas me pareceram um pouco inverossímeis, como “portões sempre abertos, pois não há necessidade de se temer depredações” (sic). Não confio muito nos humanos, antes ou depois de uma Guerra Final.

E o final... ah, que final bem sacado!

Vida na Estante

Menor conto do livro, e meu preferido. Demonstra que as traças são muito mais racionais que alguns seres humanos: às vezes um best-seller é mais delicioso e agradável ao paladar do que um grande clássico envolto em formol e erudição.

Os olhos de Joana

A pesquisa histórica desse conto é invejável, mas ele não entra na minha lista de preferidos. Apesar de não se mostrar confuso, o conto não me absorveu como leitor. Talvez sejam o excesso de nomes, talvez a história de Joana D’Arc não me empolgue muito. Acho que é mais questão de opinião, sabe.

O Senhor do Tempo

Outro pequeno e pessimista conto. Mas extremamente verdadeiro. Nem mesmo Deus acerta todos os chutes, não é mesmo?

Deus embaralha, o Destino corta

Falar sobre felicidade não é das tarefas mais fáceis, mas você se saiu muito bem nessa, Ana.

Feitiço sem Nome

Mediano, um conto com um enredo até bastante normal. Não tenho muito o que falar sobre ele.

A Dama de Shalott

Um dos maiores e mais bem elaborados contos do livro. Conta a história de Liliane, uma menina que não conhecia o mundo e vivia enclausurada, tecendo bordados com as imagens que via pelo espelho de seu quarto – uma vez que olhar diretamente para Camelot lhe traria uma maldição terrível.

O conto é fluido e ritmado, e seus parágrafos – praticamente de mesmo tamanho e com uma terminação rimada – mostram que, além de saber contar uma boa história, Ana Cristina também sabe construir uma narrativa que mistura de tudo um pouco e, entre o tudo e o pouco, colocar uma pitada de magia e uma colher generosa de competência.

Como nos tornamos Fogo?

Outro que não fui muito com a cara. Não sei, acho que narrativa não me atraiu muito, ou a minha compreensão pode não ter sido assim tão completa. Aqui o erotismo e a união entre duas naturezas diferentes não funciona tão bem como em “Chiaroscuro”.

Pelo espaço de um momento

Uma história gostosa de ler, ao mesmo tempo real e fantástica, com um quê de nostalgia impresso no tom da história. O retrato do menino me fez lembrar Dorian Gray.

Borboleta

Uma forma bastante interessante de exorcizar demônios e tristezas. Para aqueles que desejam fazer isso, esse conto é interessantíssimo. Já eu, apesar de não fazer origamis, tenho meus demônios em forma de papel. Estão todos nos meus cadernos, longe da minha cabeça e dos meus pensamentos.

Viagem à Terra das Ilusões Perdidas

Divertido e leve de se ler, um enredo bastante inusitado e uma história mais inusitada ainda. Não há idade para ir à Terra das Ilusões Perdidas.

O Baile de Máscaras

Máscaras são coisas que me chamam a atenção, sempre. Escrever sobre elas não é fácil, visto todas as implicações filosóficas sobre seu uso. Mas esse conto ficou incrível. O final foi eficaz e surpreendente.

Lenda do deserto

A ilustração é essencial para a complementação do conto, e consegue satisfazer perfeitamente a intenção. E a história é boa, mas figura na lista de medianos.

O mapa para a Terra das Fadas

É nesse conto que Ana Cristina se doa mais – ou assim nos parece fazer. O fato de ser uma história real só aumenta a impressão de verdade e sinceridade que a autora imprime em seus contos. Na história, Ana e seu filho, Miguel, tentam guiar a alma de um coelhinho morto para a Terra das Fadas, onde será bem cuidado pelos seres mágicos.

Emocionante e belo, o conto figura na minha lista de preferidos.

O eremita

Um conto singelo que trata sobre as convicções de um homem elevadas às últimas consequências. Trata de esperança, pois mostra que um homem pode mudar o pensamento de outros homens de uma forma positiva. E também de desesperança, por mostrar que os homens de poder dificilmente perdem a majestade – sobretudo para um eremita.

Apocalipse NOW!

Uma forma um tanto quanto inusitada de se assistir ao fim do mundo, sentado confortavelmente no sofá da sala enquanto o locutor anuncia a chegada das bestas do apocalipse. Mas, pensando bem, acho que é o que muita gente vai fazer – e muitas emissoras também, na luta final pela audiência.

Conto Bônus: O Sábio de Osgoroth

A anta aqui precisou ler o conto duas vezes pra poder pegar a sacada dele. Mas, depois que entendi (duh!) achei incrível a forma como se desenvolve. E o final é muito, mas muito interessante.

***

A impressão que se tem, ao terminar de ler Anacrônicas, é a de que você visitou um milhão de mundos distintos em apenas algumas agradáveis horas de leituras. E que valeu a pena sentar durante algum tempo e deixar se perder pelas reentrâncias de um livro tão pequeno, mas ainda assim tão complexo e completo. A Ana está de parabéns.

E que venham outros!

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

A Leste do Éden – John Steinbeck

Não sei se isso acontece com vocês, mas vez ou outra eu paro e me pergunto qual seria o meu escritor preferido. É uma cosia que nunca consigo responder. Os livros que leio são bons, alguns até mesmo geniais, mas nunca são daqueles que me marcam ou significam grande coisa para minha formação. Leio diversos autores, mas preferidos, somente um ou dois, daqueles que você precisa ler avidamente até o fim, segurando os livros como pedras preciosas para só largar depois que as últimas páginas terminam.

Com meu primeiro livro de John Steinbeck, posso dizer que acabo de adquirir mais um escritor preferido.

A situação em que comprei minha edição de “Leste do Éden” (ou, como consta na minha capa, “Vidas Amargas”, por conta do filme originado a partir do romance) foi bastante estranha. Estava eu no sebo, revirando livros e mais livros como sempre faço e gosto de fazer, a procura de alguma coisa interessante, mas sem achar nada que valesse a pena. Então pensei: ‘quer saber? Vou escolher o maior livro que tiver nessa estante, pelo preço mais barato’. Puxei o livro – um calhamaço de 600 e poucas páginas – e li o primeiro parágrafo. Um saco, logo pensei. No começo, John Steinbeck se preocupa em descrever minuciosamente toda a região das Salinas, onde o romance tomará lugar. Não desisti: avancei na leitura e, quando percebi, já estava acompanhando as desventuras das famílias Trask e Hamilton pelas paisagens áridas e empobrecidas da região.

John Steinbeck não nega suas raízes. O livro – considerado pelo próprio autor como seu melhor trabalho – possui um toque autobiográfico bastante evidente. Nascido e criado na região que descreve tão bem logo aos primeiros parágrafos, o autor consegue transpor para o papel tudo aquilo que, acredito, ele observava, sentia, cheirava. O narrador é um tipo de personagem onisciente, descendente da família dos Hamiltons, e me pergunto se o próprio Steinbeck não estaria contando um pouco de sua própria história.

O livro começa mostrando a chegada e a instalação de duas famílias bastante diferentes na região das Salinas, nos Estados Unidos. A primeira tem como patriarca Sam Hamilton, um homem bom, obcecado por invenções e patentes. Sam passa o dia inteiro inventando mecanismos para ajudar os homens da região, criando poços, dando de comer aos animais e procurando sempre atender a todos os habitantes da região da melhor forma possível, esquecendo-se de sua própria família e de si mesmo.

A segunda família tem como protagonistas os irmãos Adam e Charlie Trask. Em uma alusão clara a Caim e Abel – que se repetirá, mais a frente, com os filhos de Adam Trask – os irmãos disputam o amor e a atenção do pai, um veterano de guerra linha dura que acredita mais no poder de sua bengala do que no poder das palavras.

Há, ainda, uma terceira personagem fundamental para o desenvolvimento da história: Cathy Ames. Cathy (ou Kate, mais para frente) talvez seja uma das melhores personagens construídas ao longo de todo o romance. Ouso dizer que foi uma das vilãs que mais aprendi a admirar na literatura que já li. Fria, cruel e paciente, Kate é o tipo de vilã que deixaria Darth Vader parecer uma menininha indefesa de dez anos de idade. Dificilmente alguém conseguirá se manter impassível frente às atitudes da personagem – que, apesar das vilanias e da postura falsamente santa, possui uma das mentes mais cruéis e absurdamente loucas do mundo.

Um dos pontos mais interessantes do livro é a sua forma de construção. Ele não possui muitas descrições – excetuando-se, é claro, as longas e cansativas descrições de paisagens que vez ou outra pipocam no texto –, sobretudo acerca dos sentimentos dos personagens. E isso é fascinante. O narrador não precisa dizer alguma coisa do tipo ‘ele olhou para ela com um olhar raivoso’, pois os próprios diálogos conseguem passar essa mensagem. Diálogos sobre diálogos, o leitor consegue perceber a intenção do autor em colocar ali, naquelas poucas – e aparentemente vazias – frases, toda a carga emocional que caracterizará as cenas e os seus participantes.

Não há como definir uma sinopse para um tipo de livro como esse. É uma história majestosa e grandiosa, que cobre cerca de cinquenta anos (ou mais, estou chutando um período estimado) da história de duas famílias e a forma como elas se entrelaçam. Seus dramas, frustrações, desejos, anseios e alegrias. Uma aula para quem deseja escrever alguma coisa; horas e mais horas certas de distração, reflexão e literal viagem para o mundo de Steinbeck para aqueles que apenas desejam ler o livro no ônibus ou antes de dormir.

Uma coisa é certa: eu simplesmente me fascinei com a narrativa de Steinbeck.